A Lei de Cotas e o valor de si mesmo

A Lei de Cotas completa 21 anos hoje. Queremos aproveitar a ocasião para falar sobre duas dimensões sobre as quais seus efeitos se fazem presentes: (1) a dimensão do valor de si mesmo e do trabalho, no que diz respeito a uma sociedade democrática, e (2) a dimensão do valor de si mesmo para a pessoa com deficiência como sujeito produtivo.

Do ponto de vista da democracia, a Lei de Cotas faz parte de um conjunto de medidas governamentais de caráter compensatório em favor de grupos mais vulneráveis. Como diz José Carlos do Carmo, “A razão dessa e de outras ações afirmativas implementadas pelo governo é corrigir defasagens histórico-culturais e zelar para que os cidadãos tenham seus direitos fundamentais garantidos” (2011, p. 33).

Sob este aspecto, a Lei de Cotas é uma medida de construção e renovação cultural, pois visa alterar a situação atual em direção a um equilíbrio, uma situação mais justa. Com esta intenção, espera-se superar os baixos níveis de contratação de pessoas com deficiência pelas empresas. Historicamente, “Os empregadores se eximiam de responsabilidade para com esse público, culpando o governo por não resolver a equação: acesso à educação + boa formação = oportunidade de emprego (…). Hoje, no entanto, reconhece-se que essa obrigação não se esgota nas estatais, pois os princípios da equidade e igualdade têm caráter horizontal e estendem-se às relações particulares. Assim, toda sociedade é responsável por favorecer a concretização dos direitos fundamentais do cidadão” (ibid., p. 34 e 35).

Ao mesmo tempo em que a Lei de Cotas renova uma cultura, ela restaura o valor da pessoa para ela mesma. A ninguém é permitido escolher em que condição virá ao mundo. Portanto, não é justo que uma parcela da população seja prejudicada por conta de fatores (sociais, culturais, econômicos ou físicos) que estão fora de seu controle. Neste sentido, a Lei de Cotas atua construindo um sentido de justiça equitativa, permitindo que a pessoa com deficiência tenha acesso ao trabalho, um direito fundamental previsto na Constituição Federal. A construção de uma sociedade democrática passa pela equidade dessa justiça distributiva que remodela uma cultura antiquada enquanto cria oportunidade de restauração do valor de si mesmo para o sujeito deficiente.

Ou seja, não se trata apenas da igualdade, no sentido de “o meu direito é igual ao direito do outro”, mas de equidade, isto é, o pensamento de que é justo favorecer certos grupos mais vulneráveis da sociedade. Este postulado evita que aqueles que não podem compartilhar do quinhão mais produtivo da sociedade sintam-se excluídos, abrindo a possibilidade para que possam desenvolver um senso de justiça próprio. Em outros termos, a saúde de uma democracia depende, em grande medida, de que seja dado um suporte institucional para que essas pessoas desenvolvam um sentido de respeito por si próprio. E isso se dá através do trabalho, através da inclusão e da participação do sujeito nos processos produtivos.

Apesar do pluralismo moral das sociedades contemporâneas, todos temos o mesmo valor intrínseco: não existe melhor forma de equilibrar as exigências conflitantes entre liberdade e igualdade do que desconstruindo a cultura da exclusão. Testemunhar uma pessoa resgatando o valor de si mesma através da inclusão no mercado de trabalho e do acesso pleno aos bens comuns é participar do resgate do valor integral da comunidade, e assim experimentar a renovação dos nossos próprios valores.

Quem a Lei de Cotas inclui?

Quando comecei a escrever este post ainda não tinha em mãos o artigo da Ana Maria Machado da Costa, que trata do mesmo assunto. Queria argumentar que as pessoas com transtornos mentais podem ser contempladas pelos benefícios das Cotas, conforme prevê a Lei nº 8.213, ou Lei de Cotas. Em seu texto, intitulado “O Reconhecimento da Pessoa com Transtorno Mental Severo Como Pessoa com Deficiência: Uma Questão de Justiça”, Ana Maria descreve o caminho das pedras para que isso aconteça; e faz isso com mestria, clareza de linguagem e fundamentação segura.

Me lembro de quando li pela primeira vez o Decreto nº 6.949/09, que ratifica a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. A partir daquele dia nunca mais consegui entender porque ainda tem gente que não admite a inclusão de pessoas com transtornos mentais na Lei de Cotas. Mas o que significa tudo isso?

Em primeiro lugar, a Convenção da ONU diz que pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos, entre outros, de natureza “(…) mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas”. Será que as pessoas com transtornos mentais se enquadram aí? Uma resposta negativa, neste caso, só me parece indicar duas coisas, medo da loucura ou desconhecimento das implicações causadas pelo transtorno mental.

Além disso, no Brasil, quando uma convenção internacional de direitos humanos é ratificada ela passa a ter peso constitucional, ou seja, passa a valer acima das leis ordinárias. Este é o caso da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, do Tratado da Guatemala ou Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência e, através desta, da famosa Declaração de Caracas, além da Convenção 159 da OIT. Todos estes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo governo brasileiro e são, portanto, integrantes do ordenamento jurídico de nosso país.

Todos estes tratados e convenções constituintes da ordem jurídica nacional relativizam um conceito de deficiência ultrapassado, que já deveria ter sido deixado de lado na hora de computar as cotas obrigatórias por lei nas empresas. Trata-se daquele que se observa no Decreto nº 5.296/04. E mesmo a respeito deste, Ana Maria Machado da Costa diz:

O Decreto 3.298 de 20 de dezembro de 1999, que regulamentou as normas de estipuladas pela Lei 7.853, com as atualizações promovidas pelo Decreto 5.296, de 2 de dezembro de 2004, estabeleceu o conceito de deficiência adotado até hoje nas ações de proteção estabelecidas na Política Nacional para Integração das Pessoas com Deficiência. Em seu artigo 3º, I, considera deficiência ‘toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano’.

Tal definição, não obstante referir a perda ou a anormalidade da função psicológica, ao tipificar as deficiências, em seu artigo 4º, deixou de mencionar as que dizem respeito a esse tipo de comprometimento funcional, como é o caso do transtorno mental (…).

O entendimento majoritário, quando se fala dos destinatários das políticas públicas para os deficientes, restringe-se à leitura isolada do artigo 4º. A doutrina e a jurisprudência, não obstante, têm entendido que o artigo 4º do Decreto 3.298/99 deve ser interpretado em consonância com o art. 3º do mesmo diploma legal. Em outras palavras, a interpretação da norma deve levar em conta o sistema no qual a mesma encontra-se inserida (Recurso em Mandado Segurança nº 19.257- DF (2004/0169336-4).

Além disso, vários autores têm destacado que o rol das deficiências do artigo 4° do Decreto 3.298/99 é exemplificativo e não taxativo”. (2011)

Tudo isso vem de encontro à importância fundamental que tem, quando se pretende construir uma sociedade mais saudável, da inclusão social das pessoas com transtornos mentais no mercado formal de trabalho. O trabalho é, sem dúvida, uma das melhores maneiras de se promover a inclusão social. Mas esta é uma tarefa que deve ser conduzida com responsabilidade e, para isso, precisamos lançar mão de técnicas e conhecimentos em Psicologia e Gestão de Pessoas. O Support Employment é uma dessas técnicas e a Agrega trabalha para desenvolver conhecimentos e pesquisas no campo do trabalho e da saúde mental no sentido de promover a inclusão social das pessoas com transtornos mentais sem perder de vista o paradigma do cuidado.

A lei já permite e os saberes já asseguram, mas ainda precisamos romper barreiras como o estigma, o preconceito e a desinformação para que a prática da inclusão cidadã das pessoas com transtornos mentais se torne comum em nosso país, o que já acontece em outros países como Austrália, Canadá, China, Alemanha, Índia, Irlanda, Nova Zelândia, Panamá e Estados Unidos (Machado da Costa, 2011).

Para ler a íntegra do artigo “O Reconhecimento da Pessoa com Transtorno Mental Severo Como Pessoa com Deficiência: Uma Questão de Justiça”, de Ana Maria Machado da Costa, visite a seção “Artigos” do nosso blog: http://www.redeagrega.com/#!artigos

A legislação evolui e inclui ainda mais pessoas!

Muito boa notícia: desde abril de 2012, no Estado do Rio de Janeiro, pessoas com transtorno mental estão incluídas nas cotas obrigatórias às empresas (Lei 8.213).

ATA DE AUDIÊNCIA “Aos doze dias do mês de abril do ano de 2012, às 14h05, na sede da Procuradoria do Trabalho da 1ª Região, com as presenças das procuradoras do Trabalho, Lisyane Chaves Motta e Luciana Tostes de Guadalupe e Silva, no interesse do Procedimento Promocional nº 002290.2011.01.000/3, foi inaugurada a reunião para ressaltar o papel instrumental do Procedimento Promocional e se registra desde já a premissa para atuação institucional de que estão incluídas nas cotas das empresas (lei 8213) pessoas com transtorno mental na forma da Convenção de 2008.”

Lei da Reforma Psiquiátrica – Lei nº 10.216 / 01

Lei da Reforma Psiquiátrica – LEI Nº 10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001

Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.

Art. 2º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.
Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:
I – ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
II – ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III – ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV – ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V – ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
VI – ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII – receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;
VIII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Art. 3º É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.

Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
§ 1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.
§ 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º.

Art. 5º O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário.

Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II – internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e
III – internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

Art. 7º A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a consente, deve assinar, no momento da admissão, uma declaração de que optou por esse regime de tratamento.
Parágrafo único. O término da internação voluntária dar-se-á por solicitação escrita do paciente ou por determinação do médico assistente.

Art. 8º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina – CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1º A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.
§ 2º O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.

Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.

Art. 10º Evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e falecimento serão comunicados pela direção do estabelecimento de saúde mental aos familiares, ou ao representante legal do paciente, bem como à autoridade sanitária responsável, no prazo máximo de vinte e quatro horas da data da ocorrência.

Art. 11º Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão ser realizadas sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde.

Art. 12º O Conselho Nacional de Saúde, no âmbito de sua atuação, criará comissão nacional para acompanhar a implementação desta Lei.

Art. 13º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 6 de abril de 2001; 180º da Independência e 113º da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Jose Gregori
José Serra
Roberto Brant

Lei 8.213/ 1991 – Seção sobre a Habilitação e Reabilitação Profissional

Lei 8.213 de 24 de julho de 1991

Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.

…….

Seção VI Dos Serviços

Subseção II Da Habilitação e da Reabilitação Profissional

Art. 89. A habilitação e a reabilitação profissional e social deverão proporcionar ao beneficiário incapacitado parcial ou totalmente para o trabalho, e às pessoas portadoras de deficiência, os meios para a (re)educação e de (re)adaptação profissional e social indicados para participar do mercado de trabalho e do contexto em que vive.
Parágrafo único. A reabilitação profissional compreende:
a) o fornecimento de aparelho de prótese, órtese e instrumentos de auxílio para locomoção quando a perda ou redução da capacidade funcional puder ser atenuada por seu uso e dos equipamentos necessários à habilitação e reabilitação social e profissional;
b) a reparação ou a substituição dos aparelhos mencionados no inciso anterior, desgastados pelo uso normal ou por ocorrência estranha à vontade do beneficiário;
c) o transporte do acidentado do trabalho, quando necessário.
Art. 90. A prestação de que trata o artigo anterior é devida em caráter obrigatório aos segurados, inclusive aposentados e, na medida das possibilidades do órgão da Previdência Social, aos seus dependentes.
Art. 91. Será concedido, no caso de habilitação e reabilitação profissional, auxílio para tratamento ou exame fora do domicílio do beneficiário, conforme dispuser o Regulamento.
Art. 92. Concluído o processo de habilitação ou reabilitação social e profissional, a Previdência Social emitirá certificado individual, indicando as atividades que poderão ser exercidas pelo beneficiário, nada impedindo que este exerça outra atividade para a qual se capacitar.
Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:
I – até 200 empregados……2%;
II – de 201 a 500…………….3%;
III – de 501 a 1.000…………4%;
IV – de 1.001 em diante……5%.
§ 1º A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante.
§ 2º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social deverá gerar estatísticas sobre o total de empregados e as vagas preenchidas por reabilitados e deficientes habilitados, fornecendo-as, quando solicitadas, aos sindicatos ou entidades representativas dos empregados.