*Por: Naldo Moreira
Diz com orgulho que o Có herdou do pai, que não é nome de família não, que é um apelido que só grudava nos homens, mas que sua personalidade atraiu para si.
Não se produz uma criatura como Dona Elsa Có a não ser no sertão, mantida desde muito menina na labuta insana, no suor da lavoura, no vai e vem em torno do fogão a lenha, na manufatura forte de potes e panelas, nas andanças no mato, nos banhos de rio, nas danças da Folia e do tambor do Boi Janeiro da cidade de Jequitinhonha.
Seu vigor físico, sua miragem cósmica, seu arsenal simbólico e sua potência estética são cozidos, tudo ao mesmo tempo, no caudal desta mistura.
Por outro lado, seu discurso hemorrágico e a diversidade louca de atividades em que parece envolvida, nos levam a pensar que Dona Elsa padece do mal do século, do mal das grandes cidades, apressadas, estressadas, emparedadas para dentro de si: o mal da ansiedade.
Quase não observo ansiedade nos anciãos sertanejos, ou seja, naqueles que só muito tarde na vida vieram, se vieram, a desfrutar dos confortos da modernidade: direito a ir à escola, ou seja, meio dia roubado ao cabo da enxada, oferta geral de produtos industrializados, prontinhos e empacotados, estradas de verdade, para veículos motorizados e, sobretudo, casa eletrificada, banho quente a jato, ferro na tomada e geladeira, artifícios que só vêm sendo implantados, em ritmo acelerado, de dez anos para cá, nos povoados e roças desses fins de mundo.
Em setembro, no CAPS, propus aos profissionais da medicina, enfermagem, psicologia e psiquiatria, maioria dos presentes à palestra, que pensássemos juntos a questão da ansiedade comparando o contexto rural sertanejo e o contexto urbano, sobretudo o das grandes cidades.
Não manipulo com segurança os conceitos científicos referentes ao caso e corro o risco de ser banal, mas costumo caracterizar a ansiedade, até porque não raro a sinto corroendo minhas próprias entranhas, como um esforço ineficaz para driblar o tempo: estamos diante do semáforo, com o pé no acelerador, os olhos pregados na bola de luz vermelha, esperando que se apague, hipnotizados, alheios a tudo e a todos, batendo a perna em repetição nervosa que implica em gasto inútil de energia, sendo que, ali do lado de fora, alheio a meu olhar petrificado, a marcha do mundo vai seguir, inexorável: um minuto de sinal “pare” vai levar exatamente sessenta segundos para cambiar “siga” e ponto final.
Presépio sendo preparado em 2009.
Diante deste quadro, a proposta de pensamento que coloquei aos ouvintes foi a seguinte: esse tempo interno entrópico, enervado, ativo-improdutivo, talvez seja gerado na medida em que a vivência do tempo real, o tempo do corpo imerso nos elementos naturais e no espírito da comunidade, em luta cooperativa com a matéria-prima, pelo trabalho braçal, vai sendo devorado pelo isolamento físico, pela especialização de função e pelo automatismo típico da civilização mecânica.Na vida moderna, se alguém precisa conversar com um amigo, toma do computador, manda uma mensagem, pega o celular ou, na melhor das hipóteses, vai à casa do dito cujo usando automóvel próprio ou coletivo, de todo modo, transportado em bolhas de aço que mantêm os finos sentidos humanos a uma distância segura de cada pequeno detalhe do mundo natural e da vida humana que fervilha lá fora, atrás das vidraças, detalhe que não escaparia ao caboclo que caminha ao encontro de um “cumpadi” da comunidade vizinha e vai afeito às marcas do caminho: uma casa, uma fruta madura, um formigueiro, um cão de passagem. No paraíso artificial da metrópole, se alguém quer comer carne, não precisa dominar complexos saberes empíricos sobre o meio ambiente e o cosmos, e não tem porque fazer uso da força e da argúcia necessárias à guerra de paciência e brutalidade que envolve a caça e a pesca; simplesmente, vai ao açougue e compra um quilo de peito de frango já picado para o strogonof. Se no alto dos arranha-céus alguém necessita de cem litros d’água pura para beber, tomar banho e lavar a louça, basta girar o botão da torneira e o líquido incolor, insípido e inodoro vai jorrar lá em cima, a que parece, por magia.
Presépio pronto em 2011.
E assim, a cada gesto sensível, a cada ação inteligente que deixamos de efetuar porque uma máquina os executou por nós ou os incorporou em certo produto pronto a ser apanhado, na prateleira do supermercado, implica, em alguma medida, na perda do vigor físico, dos poderes plásticos e das dinâmicas simbólicas que modulam a existência sertaneja de que tenho falado, a dos artistas, em especial, apesar dos recursos materiais e culturais limitados de que dispõem na construção de uma vida de trabalho.Nesse ambiente, percebo que o tempo, sobretudo o dos camponeses mais velhos e arraigados, é esse tempo ditado pela matéria: pesos, cheiros, toques, contatos, minutos lentos de cada pequeno encontro.Mas esse compasso está se transformando nos sertões.Perfis como o de Dona Elsa Có, nessas ilhas culturais em rápido processo de mudança, já são raros entre os jovens, mas tenderão a desaparecer, em poucos anos, a maioria tendo mergulhado até o pescoço na esfera urbana, gozando do paraíso entre quatro paredes: televisão, isolamento individualista, perda de raízes, correria sem propósito e sem resultado, lixo cultural, “fast junky food” gerando obesidade aliada à má nutrição, etc., etc.Sendo assim, imagino que, em futuro não muito distante e infelizmente, parte dessas pessoas talvez esteja constituindo a clientela de centros de tratamento médico e psiquiátrico que, em face da eterna penúria governamental, dificilmente poderão prestar um atendimento de qualidade.
E é assim que as melhores condições espontâneas possíveis de promoção da saúde física e mental poderão vir a ser desperdiçadas, na medida em que a base sólida e o caldo substancioso da vida antiga vêm sendo pulverizados pela baixa modernidade, nesses e em milhares de outros lugares.
Nascida e criada no sertão, contudo, as potentes baterias anímicas de Dona Elsa Có se mantêm perpetuamente abastecidas, possibilitando a criação de coisas e relações de pessoas e coisas. O que poderia, na confusão da selva de pedra, ser um problema humano a mais, um dique que causa um tique, um hábito mecânico, um choque perigoso ou, então, uma dispersão, um desgaste inútil de energia, na periferia da pequena cidade de cultura cabocla, na casa de Dona Elsa, é um fluxo desbaratado de produção material e experimento estético que acaba beneficiando, e muito, estratos diversos da sociedade local.
As vezes é difícil perceber quantas vezes nossas deficiências e nossas potencialidades se encontram emaranhadas, dependendo, para sua evolução, num ou noutro sentido, do contexto econômico, cultural e interpessoal em que nos encontramos inseridos.
Dona Elsa é, como Noemisa e Lira, herdeira da tradição paneleira e também a recriou a seu modo. Não costuma mais fazer “vasia di barru”, exceto uma ou outra, “pru gastu”, ou por encomenda de algum vizinho ou compadre que preza e preserva o gosto roceiro. Mas em minha última visita tinha feito uma queima de panelas monstruosa, como comprova a foto ao lado, com a ajuda de Leonardo, filho adotivo, com quem pode encontrar, à disposição para suas maluquices, barro, lenha, oficina e fornos para a cerâmica. Essa fornada em particular ela concebeu para ajudar uma comadre sua muito idosa e que estava passando por dificuldades adicionais, precisando urgente fazer algum “dinhirin”. A senhora foi paneleira durante décadas mas há muito tempo não labutava mais com os bolões de argila, a lenha grossa e o fogo medonho que caracterizam a atividade. Como veio pedir socorro, então, Dona Elsa, pau-pra-toda-obra, teve de imediato a idéia própria de gente muito ativa, generosa e espertalhona: Leonardo forneceria o espaço de trabalho, toda a matéria prima necessária e ajudaria com o serviço duro do cozimento, as duas iam dividir a modelagem do vasilhame e os lucros reverteriam apenas para a necessitada, claro.
Claro como cristal, para os envolvidos no negócio, mas trata-se do tipo de raciocínio que os novos tempos quase não mais comportam e constitui a prova de uma bem diversa psicologia da troca existente entre esses nativos atados à terra.
Há um século Marcel Mauss escreveu um dos clássicos da antropologia moderna, entitulado “O Dom” ou “A Dádiva”. O livro demonstra, e depois dele muitos outros, como o comércio entre indígenas e camponeses implica um intrincado sistema de câmbios materiais e simbólicos que pode estranhar ao sujeito acostumado, nas cidades de hoje em dia, a valorizar bens de uso e consumo a partir de sua expressão monetária.
Certa vez me deparei, numa de minhas primeiras viagens ao vale, com um certo caboclo que tinha andado duas léguas ou doze quilômetros de mula, da “grota” onde morava até a feira de sábado mais próxima, no caso, a da cidade de Chapada do Norte, capital de país quilombola, onde pretendia “niguciá” um único porco, sim, um único porquinho, da espécie miúda e rústica que esses sertões criaram, sem a menor preocupação com produtividade, sendo que alguns ainda guardam marcas selvagens, como focinhos compridos de Caititu. O homem estava paradão no canto da feira, ao lado do animal, que tinha retirado da cangalha da mula e deitado no chão, mas mantido imóvel como veio, só com a cabeça de fora da bruaca, uma bolsa de couro rudimentar há séculos usada pelos tropeiros brasileiros para todo gênero de carga. Fiz no ato um slide da cena impactante e o escaneei para postá-lo abaixo.
Perguntei se o leitão já tinha sido vendido, ao que o caboclo disse que sim, que o comprador estava por ali, feira afora, mas que já voltava. Santíssima tranqüilidade! Inexperiente e etnocentrado, foi então que arrisquei a questão estapafúrdia: “e qual foi o preço que vocês acertaram?” O tipo demorou alguns segundos para abrir a boca, num “flash” de desconfiança, mas afinal respondeu, mineira, matreiramente, com aquela calma, aquela naturalidade que possuem e de repente nos deixam desarmados: “Aaah, sô! Iss’aí nóis num cumbinem’ ainda não”.
Que tremendo tapa na cara! Vender, já vendeu, mas isso aí, o preço, seu moço, isso que parece tão obviamente importante, ainda não foi tratado, um sinal muito simples mas muito claro de que essa negociação entre pretos pobres da feira de sábado de Chapada do Norte, naquele inverno de 1998, possuía uma abrangência e uma organicidade inexistentes na mera troca entre um bem material despersonalizado e a moeda geral que tudo nivela, achatando.
Pois bem, enquanto o mundo mergulha a sua volta no buraco negro das especulações financeiras, Dona Elsa ainda se rege por tais leis comunais muito antigas, na verdade, constitutivas de nossa humanidade.
Para começar, sustentou com os próprios braços os filhos naturais, já numerosos, em conjunto com mais de cinquenta outros que alega ter adotado e criado, ao longo da vida, até o ponto em que necessitou passar os cuidados desse verdadeiro orfanato à Santa Igreja Católica.
Além de atuar em várias frentes na oficina do barro de Leonardo, possui na própria casa um espaçoso, embora pouco sofisticado, ateliê de costura, onde produz peças para vender, para remendar na base da camaradagem, para reformar e doar a quem precisa, para paramentar os bonecões que acompanham a festa do Boi Janeiro ou ornamentar o presépio, todo fim de ano, em honra a Baby Jesus.
Na sala da frente existe uma pequena exposição de obras suas, de amigos ou de associações de artesãos que ela procura ajudar por ajudar, sem recompensas, sendo sabido que sua figura, muito conhecida, centraliza e atrai compradores.
São ofertas de grande variedade, como vemos nas fotos: barquinhos de palito de picolé montados pelos detentos da cadeia pública, oncinhas que o amigo Dema esculpe na madeira e ela acredita valorizar ao recobri-las de estampas tigradas, estrelas multidimensionais feitas de placas de papelão, primeiro forradas de retalhos de tecido e depois costuradas, onde deixa uma fenda, difícil de notar, para inserir moedas como num cofre, brechinha que me desafia a encontrar mas, antes que eu tente, mostra ela mesma, orgulhosa, elétrica como uma menina.
Tudo indica que Dona Elsa é também um dos principais suportes do Boi Janeiro, pois guarda e reforma os principais implementos do grupo que desfila pela cidade nos primeiros dias do ano. Estava exultante em minha visita de fins de dezembro de 2010 ao exibir os instrumentos que tinha acabado de conseguir para animar a festa, dias depois: violas, pandeiros, atabaques e caixas de guerra, bordas de aço reluzindo de novo, tudo comprado com dinheiro gordo que obteve junto a um dos raros empresários locais, de quem precisou infernizar a vida para arrancar o bem comum imaterial.
Além disso, quando acha necessário, forma um grupo diminuto com integrantes da batucada e partem para visitar o hospital da cidade onde colaboram na cura dos enfermos com vigor de dança e injeções de poesia.
Naquele dezembro encontrei-a na primeira manhã já costurando, mas abandonou de imediato o trabalho para atender o estranho, pois já não se lembrava que a tinha visitado no ano anterior, pela primeira vez. Mas não demora e dispara a falar e pouco se importa que eu a filme e fotografe, assim mesmo do jeito como está, o que faria horror ao comum das mulheres, com uma lâmina de pêlos emplastrados postos de pé, no topo da cabeça, e uma capa de plástico negro protegendo a blusa dos produtos químicos que alguém tinha acabado de aplicar em seus cabelos brasileiros, meio pixains, para alisá-los, pois se preparava para uma festa de casamento.
Assim a vemos na foto, espécie de personagem dos quadrinhos de Angeli, a cabocla punk. Enquanto andava, matraqueando, gesticulando, mostrando objetos, abrindo caixas, eu a filmava, a capa esvoaçando, naturalíssima.
Em seguida fomos juntos a Leonardo pois ansiava para me mostrar o presépio, quase pronto, que montam todos os anos na sala da frente da oficina, local onde vendem parte de suas peças e também algumas de amigos.
Detalhes da obra aparecem nas fotos que selecionei.
Os reis magos, Maria, José e outros presentes, grandes peças de cerâmica de cerca de um metro de altura, ela mesma fez, ao longo dos anos, ou refez, quando se quebraram, pintando o barro queimado com tintas oleosas que as artificializam pois não percebemos mais a matéria rústica de que são compostas.
Obviamente, não se trata de um presépio qualquer mas do presépio de Elsa Có onde é permitida a presença de personagens de toda matéria, gênero e tamanho, incluindo aí alguns dos sete anões em pessoa, embora pareça que Branca de Neve não tenha sido convidada.
No galpão dos fundos Leonardo tinha colocado de pernas para o ar e trabalhava nas canelas de um dos animais que deveriam estar lá na frente acolhendo o Deus Menino. Observei, mas não estava capacitado para notar a imperfeição, foi preciso explicar: “num tá venu não? Mãe é doida, sô! Ela colocô nu burru ess’ calu aqui qui só boi tem atrás, pra cima do calcanhá, viu só?”
Dona Elsa Có queria por na cena natalina um muar com perna bovina: disparate da imaginação ou mutação divina?
* Este texto compõe a série de posts elaborados por Naldo Moreira com base no minicurso “Saúde Mental e Contexto Social: Alguns Exemplos do Jequitinhonha”, ministrado no Caps Prof. Luís da Rocha Cerqueira (Caps Itapeva – SP), em 29 de setembro de 2012.
Para ler o post inaugural acesse: <https://redeagrega.wordpress.com/2012/10/01/da-loucura-e-da-estetica-do-vale-do-jequitinhonha-para-a-saude-mental-de-sao-paulo/>
Para ler o segundo post, “folie” e estética, acesse: <https://redeagrega.wordpress.com/2012/10/26/cronicas-do-vale-do-jequitinhonha-folie-e-estetica/>
Para ler o terceiro post, Os Juaquis da folia, acesse: <https://redeagrega.wordpress.com/2012/11/11/os-juaquis-da-fulia/>
Para ler o quarto post, Ulisses e Noemisa, acesse: <https://redeagrega.wordpress.com/2012/11/29/cronicas-do-jeqiutinhonha-ulisses-e-noemisa/>
Para ler o quinto post, Lira Marques, acesse: <https://redeagrega.wordpress.com/2012/12/13/cronicas-do-jequitinhonha-lira-marques-2/>
Para ler o sexto post, Marcinho, acesse: <https://redeagrega.wordpress.com/2013/01/31/cronicas-do-jequitinhonha-marcinho/>